Com cocares, penas coloridas e pinturas faciais, estereótipos de indígenas feitos com IA (inteligência artificial) estão sendo veiculados por anúncios golpistas no Facebook e no Instagram com o objetivo de ludibriar idosos e vender falsas curas naturais para dores nas articulações e problemas de visão.
Aos Fatos identificou, na Biblioteca de Anúncios da Meta, mais de 30 vídeos que deturpam a medicina tradicional indígena para promover suplementos naturais sem eficácia comprovada.
As publicações disseminam diferentes versões de uma teoria da conspiração que diz que indígenas estariam sendo alvo de ataques de empresários da indústria farmacêutica após terem descoberto supostos tratamentos para doenças.

A mentira é contada com a ajuda de falsos caciques e pajés criados por IA. A tecnologia apresenta imagens estereotipadas das lideranças, citando que pertenceriam a povos como os Yanomami e os Pataxó — embora muitos dos vídeos apresentem elementos estéticos que remetem a culturas de outros países do continente.
Para dar credibilidade à história, os golpistas também simulam telejornais e utilizam a IA para recriar depoimentos de famosos, como o médico Drauzio Varella. Os anúncios são veiculados no Facebook e no Instagram por perfis falsos criados graças a falhas na moderação da Meta — que lucra com a venda da publicidade fraudulenta.

Após analisar os anúncios, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) considerou que o emprego da IA para criar falsas lideranças “reforça estigmas, distorce identidades e aprofunda o desrespeito histórico contra os povos indígenas”. A entidade também defendeu a promoção de uma “regulação democrática” das redes, que coloque as tecnologias a serviço do bem comum.
“A ausência de regulamentação eficaz das plataformas digitais facilita inegavelmente a produção de toda sorte de absurdo contra os povos indígenas, reproduzindo violências estruturais onde a fetichização das culturas indígenas constitui mais uma dentre as dimensões da continuidade colonial”, afirmou a Apib, em nota enviada ao Aos Fatos.
A Meta, após ser procurada pela reportagem, afirmou em nota que “atividades que tenham como objetivo enganar, fraudar ou explorar terceiros não são permitidas em nossas plataformas e estamos sempre aprimorando a nossa tecnologia para combater atividades suspeitas”.
“Também recomendamos que as pessoas denunciem quaisquer conteúdos que acreditem ir contra os Padrões da Comunidade do Facebook, das Diretrizes da Comunidade do Instagram e os Padrões de Publicidade da Meta através dos próprios aplicativos”, orientou a plataforma.
Golpe do falso pajé
Sofrendo com artrose na região da coluna e muitas dores nos joelhos, E.S., de 72 anos, foi uma das vítimas de um golpe veiculado no Facebook.
“Minha mãe mexe bastante em redes sociais, mas geralmente acredita em tudo que vê. Quando comentou comigo, já havia efetuado o pedido do que disseram ser um remédio milagroso”, contou a filha da consumidora — as duas serão mantidas sob anonimato por segurança.

Segundo o relato ouvido pelo Aos Fatos, as negociações foram feitas por WhatsApp. Na comunicação, o vendedor utilizou mensagens de áudio automatizadas, que fingiam ser de um pajé, e informou que o pagamento pelo produto só ocorreria após a entrega das cápsulas. Ouça o áudio abaixo:
A família, porém, desconfiou da propaganda e orientou a idosa a não ar informações pessoais e cancelar o pedido, o que foi feito. “Mesmo assim, esse produto chegou, e daí gerou todo o problema”, conta a filha, relatando que a consumidora ou a ser ameaçada por mensagens.
A coação incluiu o contato de um suposto “advogado”, que informou que a idosa poderia ficar com o nome sujo, ser alvo de um boletim de ocorrência e responder a processos judiciais caso não pagasse os R$ 297 referentes a três frascos com 60 comprimidos do produto.
Como alternativa, o golpista exigia a devolução dos frascos mais um depósito de 15% do valor do produto. A proposta contraria a legislação, que permite ao consumidor desistir de qualquer compra feita à distância no prazo de 7 dias, cabendo ao vendedor arcar com todos os custos — inclusive o reembolso do frete.
A família da idosa acabou por devolver o produto pelos correios, assumindo um prejuízo de quase R$ 70 pela postagem, mas se negou a pagar a taxa exigida pelo suposto advogado.
Pílula de cúrcuma
Comercializado com o nome de Alivflex, o suplemento tem como ingredientes principais magnésio, colágeno tipo 2 e cúrcuma — raiz que, ao contrário do que alegam os anúncios, é oriunda da Ásia, não possuindo qualquer ligação aos povos originários brasileiros.
O frasco do produto diz que ele é “isento de registro” pela resolução 240/2018 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que dispensa da obrigatoriedade os suplementos alimentares — regra que deixa de valer a partir de setembro, quando também esses produtos precisarão da notificação.
Procurada por Aos Fatos, a Anvisa considerou o Alivflex irregular, uma vez que, mesmo pelas regras atuais, “suplementos alimentares não podem ter indicação ou finalidade terapêutica”, não são medicamentos e, por isso, “não servem para tratar, prevenir ou curar doenças”.
A agência consultou um site do produto informado pela reportagem e concluiu que ele trazia alegações que “não são aprovadas pela Anvisa”, como as de que o suplemento “auxilia na manutenção da saúde das articulações e previne o envelhecimento precoce” e “contribui para a redução das dores associadas à artrite e artrose”.
Além de irregulares, as promessas também dificilmente serão cumpridas. Ao analisar a fórmula do produto, a doutora em biociências e biotecnologia Laura Marise, do canal Nunca Vi 1 Cientista, constatou que esse suplemento “não serve para nada”.
A pesquisadora explica que, embora alguns estudos “de baixíssima qualidade” estejam analisando o uso da cúrcuma para artrite, a curcumina — principal composto da especiaria — não é solúvel em água, o que impede que chegue às células no seu estado natural. “É impossível que o extrato de cúrcuma consiga ser absorvido pelo corpo em quantidade suficiente para conseguir qualquer tipo de efeito”, diz.

A cientista também destaca que o magnésio, além de não ter impacto na redução da dor, já costuma ser ingerido em quantidade suficiente pela alimentação. “É muito difícil ter deficiência de magnésio, porque toda planta que a gente come tem magnésio na clorofila.”
No caso do colágeno, Marise afirma que não é certo que a ingestão dessa proteína por via oral seja capaz de regenerar a articulação e aliviar a dor, embora estudos pouco confiáveis verifiquem “algum efeito benéfico”.
Ainda assim, a pesquisadora repara que os defensores do colágeno costumam recomendar doses diárias de 40 mg da substância — 20 vezes a quantidade disponível em uma cápsula do Alivflex. “Se nem com 40 miligramas funciona, que dirá com 2.”
Aos Fatos pediu posicionamento ao Alivflex, por WhatsApp, utilizando o número informado à família da idosa. O interlocutor confirmou que se tratava do SAC do suplemento, mas, ao tomar conhecimento do teor da reportagem, afirmou que era responsável apenas “pela distribuição” do produto, não tendo relação com os anúncios.
O contato disse ainda que encaminhou o pedido de posicionamento “ao setor responsável”, que “entrou em contato com o produtor”, mas nenhuma resposta foi enviada até a publicação deste texto. O espaço segue aberto para manifestação.
O caminho da apuração
Aos Fatos identificou os golpes analisando a Biblioteca de Anúncios da Meta e identificou a vítima do esquema por meio de reclamações publicadas na internet.
A família da idosa reou o link do anúncio original, áudios enviados pelos vendedores e fotografias do produto. A reportagem procurou uma especialista para analisar a fórmula do produto, além de ter pedido posicionamentos para a Anvisa, a Meta e a Alivflex.