O impacto emocional do diagnóstico, a gravidade da doença e a severidade dos efeitos colaterais do tratamento tornam o câncer um dos temas de saúde preferenciais de desinformadores.
Valendo-se da vulnerabilidade das famílias atingidas pela doença, influenciadores mal intencionados buscam engajamento e lucro com a propagação de falsas curas milagrosas e de teorias conspiratórias contra a indústria farmacêutica.
Um dos episódios recentes envolveu o ator Mel Gibson, que viralizou em janeiro ao afirmar que amigos seus teriam curado tumores graves fazendo o uso de substâncias como a ivermectina, o fenbendazol, o dióxido de cloro e o azul de metileno — tratamentos que não têm embasamento científico.
“Familiares e o próprio paciente lêem a informação na internet e não conseguem interpretar da forma correta. Alguns chegam com uma convicção muito grande de que aquilo funciona e que o médico deveria prescrever”, relata Daniel Garcia, oncologista do hospital A.C. Camargo.
Além de afetar a relação entre médicos e pacientes, a desinformação sobre o câncer também representa riscos para a saúde.
“Muitos pacientes usam medicamentos sem comprovação científica escondidos e não avisam o médico”, conta o oncologista, explicando que, ainda que o doente não abandone o tratamento convencional, a abordagem alternativa pode ser prejudicial se feita sem supervisão.
“O primeiro risco é de o paciente ter algum efeito colateral da própria medicação ou da dieta mais radical”, explica Garcia, que alerta também para a possibilidade de o princípio ativo de remédios ou compostos presentes em chás interagirem com o tratamento prescrito.
A insistência em contrariar os médicos para utilizar substâncias propagadas na internet é, muitas vezes, incentivada por uma teoria da conspiração que costuma acompanhar peças de desinformação sobre doenças: a alegação de que a indústria farmacêutica estaria escondendo a cura do câncer em nome do lucro.
“Esse é um dos mitos mais prejudiciais. A ciência tem avançado muito no tratamento do câncer, e muitas pessoas já são curadas ou vivem por anos com a doença controlada”, defende Pamela Reinaldo Leite, oncologista do Hcor (Hospital do Coração).
Para marcar o Dia Mundial de Combate ao Câncer, celebrado neste 8 de abril, Aos Fatos levantou com hospitais as principais desinformações trazidas pelos pacientes ao consultório médico, explicando o que a ciência diz sobre cada uma delas.
- A quimioterapia mata mais do que cura?
- A biópsia ou a cirurgia podem causar metástase?
- O câncer pode ser curado apenas com dieta e tratamentos naturais?
- A “pílula do câncer” (fosfoetanolamina) cura a doença?
- O açúcar alimenta o câncer?
- Ozonioterapia cura o câncer?
- Beber água com pH alcalino cura o câncer?
- O câncer é sempre hereditário?
- O câncer é causado por fatores emocionais?
- A radiação do microondas e dos celulares pode causar câncer?
1. A quimioterapia mata mais do que cura?
“Não, a quimioterapia, a imunoterapia e a radioterapia são os tratamentos mais eficazes e estudados para diversos tipos de câncer”, afirma Pamela Leite.
A médica do Hcor ressalta que, embora esses tratamentos tenham efeitos colaterais, seus benefícios superam os riscos na maioria dos casos. “Não se pode abrir mão”.
Os riscos da quimioterapia são controlados pelo oncologista que acompanha o tratamento. Quando houver necessidade, o médico pode ajustar a dose, tornando a intervenção mais branda, para minimizar os efeitos colaterais sem deixar de atacar o câncer.
Mesmo se a quimioterapia não for capaz de curar o paciente totalmente do câncer, o tratamento pode controlar a doença, deixando-a em remissão, o que garante uma melhor qualidade de vida.
2. A biópsia ou a cirurgia podem causar metástase?
O risco de o câncer se espalhar por causa de uma intervenção é muito baixo. No caso das biópsias, “menor que 1%”, diz Garcia.
“Isso já foi bem estudado. Há muitos artigos publicados que testaram o caminho da agulha, para verificar se fica algum tumor, e a conclusão é que é muito difícil disso acontecer”, afirma.
O mesmo vale para as cirurgias, que hoje adotam técnicas modernas que minimizam o risco de a doença se espalhar. “O benefício de fazer uma biópsia ou operar o tumor supera em muito o eventual risco, que é ínfimo”, defende o especialista, lembrando que a metástase depende “muito mais da biologia do tumor do que de qualquer outra coisa”.
3. O câncer pode ser curado apenas com dieta e tratamentos naturais?
“Não há nenhuma evidência de que apenas as mudanças alimentares possam curar o câncer”, alerta Pamela Leite, lembrando que os métodos convencionais — como a cirurgia, a quimioterapia e a radioterapia — ainda são as primeiras opções de tratamento.
“A gente não consegue curar o câncer somente com coisas naturais”, concorda Daniel Garcia, ponderando que manter uma dieta balanceada ajuda no tratamento, “mas não funciona de maneira isolada”.
O médico lembra ainda que, antes do surgimento da doença, uma dieta rica em alimentos antioxidantes ajuda a prevenir alguns tipos de câncer. Não existe, porém, nenhuma evidência de que ela ajude a combater a doença depois de instalada, pelo contrário: ainda que os antioxidantes não afetem o tumor em si, eles podem interferir na quimioterapia.

No entanto, é bem pouco provável que isso ocorra apenas com alimentos, já que o excesso de antioxidante está mais vinculado ao exagero na ingestão de vitaminas, alguns chás ou substâncias manipuladas com esse intuito.
Também não há evidências de que a dieta cetogênica — que prevê uma alimentação baseada em um baixo teor de carboidratos — ajuda a combater ou impedir o crescimento de tumores.
Além de não ter benefícios comprovados, o regime alimentar pode ser inclusive prejudicial para quem enfrenta a doença, já que pode fazer com que o paciente não ingira a quantidade de calorias e nutrientes adequados para responder bem ao tratamento.
4. A 'pílula do câncer' (fosfoetanolamina) cura a doença?
Como o Aos Fatos já mostrou, o Congresso chegou a aprovar uma lei em 2016 autorizando o uso da fosfoetanolamina sintética para o câncer. No ano seguinte, porém, testes mostraram que a substância era ineficaz, e a lei acabou derrubada.
Mesmo assim, muitos pacientes ainda adquirem o produto pela internet — em muitos casos, importando dos Estados Unidos — com a esperança de que ele ajudará no tratamento, o que não acontece.
Garcia enfatiza que testes realizados pela USP (Universidade de São Paulo) já concluíram que o medicamento não funciona. Mais do que isso: segundo o mesmo estudo, para alguns tipos de câncer, houve a impressão de piora da doença após o uso da fosfoetanolamina.
“Como é uma substância não tão estudada assim, a gente não sabe se pode interferir em algum tratamento padrão”, alerta o oncologista.
5. O açúcar alimenta o câncer?
Comer açúcar não faz o tumor crescer mais rápido. Qualquer célula do corpo, saudável ou cancerosa, utiliza glicose como fonte de energia. Contudo, o açúcar não é o único fornecedor de glicose para o corpo.
“Qualquer alimento que você ingere, quando metabolizado, é transformado em glicose”, explica Garcia. “Então, independentemente de comer açúcar ou não, você vai produzir glicose, que vai alimentar todas as células do corpo.”
O consumo excessivo de açúcar, no entanto, está relacionado à obesidade, que pode aumentar o risco de desenvolver câncer.
No caso dos pacientes que já têm o câncer instalado, manter uma alimentação equilibrada pode melhorar a resposta ao tratamento, ajudando o doente a tolerar melhor a cirurgia e a quimioterapia.
6. Ozonioterapia cura o câncer?
A injeção de ozônio no corpo é outro tratamento não recomendado pelos médicos pela falta de evidência de cura.

Além de não haver qualquer indício sólido de que a ozonioterapia ajude no combate ao câncer, a técnica também representa riscos para os pacientes, como inflamações, embolia gasosa (se o ozônio for injetado) ou danos pulmonares (se inalado), dentre outros.
“No caso dos pacientes que usam via retal, a ozonioterapia também pode causar irritação no local de aplicação”, alerta Garcia.
7. Água alcalina cura o câncer?
Garcia também explica que esse mito deriva do fato de que o microambiente tumoral tem um pH mais ácido, que impede o corpo de atacar o câncer.
A ingestão de água alcalina, entretanto, não consegue alterar isso, porque o corpo humano possui mecanismos rigorosos para manter o equilíbrio do pH sanguíneo, já que pHs muito altos ou muito baixos podem levar à morte.
“Ao tomar água alcalina, talvez mude um pouquinho o pH do sangue da pessoa, mas dificilmente isso vai alterar de forma significativa o pH no câncer”, explica o médico. “Antes disso, o pH sanguíneo estaria tão alterado que não seria compatível com a vida”.
8. O câncer é sempre hereditário?
O câncer é uma doença genética, uma vez que surge devido a mutações nos genes que regulam o crescimento e a divisão celular, levando à proliferação descontrolada das células. Isso não significa, porém, que seja uma doença obrigatoriamente hereditária.
“Apenas 5% a 10% dos cânceres estão ligados diretamente à mutação genética herdada”, conta Pamela Leite, ressaltando que a maioria dos casos de mutações estão relacionados a fatores ambientais, ao estilo de vida do paciente e ao envelhecimento.
“Falta de exercício físico, obesidade, alimentação não saudável, carne processada, cigarro, álcool, infecções virais… todos esses fatores podem levar a uma alteração no DNA da célula saudável e essa célula, com o DNA alterado, pode desenvolver um câncer”, enumera Garcia.
O médico também sublinha que quem herdar dos pais o gene defeituoso não necessariamente desenvolverá a doença, embora tenha um risco aumentado de ter câncer caso se exponha a fatores externos como o excesso de sol sem proteção.
9. O câncer é causado por fatores emocionais?
Traumas, lutos e outras questões emocionais costumam ser frequentemente associados ao surgimento de câncer, mas não existe uma relação direta entre os eventos.
“Embora o estresse possa afetar a saúde de modo geral, o câncer é uma doença multifatorial, que envolve genética, fatores ambientais e estilo de vida”, explica Pamela Leite.

Garcia ressalta que não existe comprovação de vínculo direto entre a depressão e o câncer, ao contrário do que ocorre com a obesidade, a baixa imunidade, a alimentação não saudável e a falta de exercício físico — condições que, comprovadamente, aumentam o risco da doença.
No entanto, o médico considera que não se pode descartar uma relação indireta entre o câncer e algumas condições emocionais.
“A gente sabe que uma pessoa deprimida se alimenta pior, não dorme direito, faz menos exercício e fica mais sedentária”, diz o oncologista, lembrando que a depressão e o estresse também podem reduzir a imunidade, o que também aumenta a predisposição ao câncer.
10. Celulares e micro-ondas causam câncer?
Não há evidência científica que o uso do microondas ou de celulares possam causar câncer. “A radiação emitida por esses aparelhos não é ionizante, ou seja, não danifica diretamente o DNA da nossa célula”, afirma a oncologista do Hcor.
“Essas ondas não têm a capacidade de lesar o DNA, ao contrário de um raio-x, que é uma radiação ionizante” concorda Garcia.
O caminho da apuração
Aos Fatos entrou em contato com hospitais que possuem centros especializados em oncologia para levantar as principais desinformações trazidas por pacientes com câncer. A reportagem também entrevistou médicos para esclarecer as dúvidas em torno da doença.