Cortes tiram depoimento de Mauro Cid de contexto para isentar Bolsonaro na trama golpista

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Trechos do depoimento concedido pelo tenente-coronel Mauro Cid no STF (Supremo Tribunal Federal) têm sido tirados de contexto para tentar eximir o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de culpa na trama golpista. Além de viralizarem nas redes como cortes de vídeos, declarações isoladas de Cid que supostamente “desmontariam a narrativa” do golpe foram replicadas pelo próprio presidente em depoimento na última terça (10).

Aos Fatos verificou ao menos 17 publicações que omitiam detalhes narrados pelo ex-ajudante de ordens sobre a participação de Bolsonaro na tentativa de ruptura institucional. Somadas, elas alcançavam cerca de 170 mil curtidas e 1,6 milhão de visualizações no Instagram, além de 8.000 compartilhamentos no X.

Entre as publicações estão trechos em que Cid alega que Bolsonaro não assinou um documento conhecido como “minuta do golpe” e que o ex-presidente agiria somente dentro das quatro linhas da Constituição.

Minuta golpista

Durante o interrogatório, Cid confirmou a existência de uma minuta golpista, elaborada por um jurista e pelo ex-assessor de assuntos internacionais de Bolsonaro, Filipe Martins. Ao ser questionado pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luiz Fux se Bolsonaro teria assinado o documento, Cid respondeu que não.

Na terça, Bolsonaro citou a resposta como argumento para reforçar que a discussão de um eventual estado de sítio teria começado “sem força” e que nada foi levado adiante.

Print de post que compartilha um trecho de vídeo em que Mauro Cid afirma que Bolsonaro não assinou a minuta do golpe. Na imagem estática do print aparece o ministro do STF Luiz Fux — homem branco de cabelo grisalho que usa uma camisa social branca, gravata azul e uma toga preta. Legenda diz: ‘Fux consegue extrair de Mauro Cid que Bolsonaro nem ministros am 'minuta do golpe'. Ministro do STF surge com pergunta esclarecedora para o caso.’
Posts usam questionamento de Fux a Mauro Cid para fazer crer que ‘minuta golpista’ nunca existiu (Reprodução/X)

As publicações e o depoimento omitem, no entanto, que Cid afirmou que o ex-presidente teria lido a minuta e feito sugestões de alterações.

“Ele [Bolsonaro], de certa forma, enxugou o documento. Ele enxugou o documento, basicamente, retirando as autoridades das prisões. Somente o senhor ficaria como preso”, respondeu Cid ao ministro Alexandre de Moraes.

Bolsonaro alegou que a minuta era um texto incompleto, que lhe foi mostrado em uma “tela de televisão” e de “forma rápida”.

Quatro linhas da Constituição

Ao ser questionado pelo advogado de Bolsonaro, Celso Vilardi, Mauro Cid afirmou ter ouvido do presidente que ele agiria somente dentro das “quatro linhas da Constituição”. Essa expressão foi repetida inúmeras vezes por Bolsonaro ao longo do seu mandato e chegou a ser checada como contraditória pelo Aos Fatos em 2021.

Os posts enganosos compartilham o trecho em que Cid afirma ter ouvido essa expressão do ex-presidente para alegar que o militar teria reforçado que Bolsonaro se manteve fiel à Constituição.

Esse, no entanto, não é o teor do depoimento do ex-ajudante de ordens, que demonstrou em diversos momentos que Bolsonaro teria planejado uma ruptura institucional para evitar a posse de Lula (PT).

Print de post que compartilha trecho de vídeo em que Mauro Cid confirma ter ouvido Bolsonaro dizer que agiria dentro das quatro linhas da Constituição. Na imagem estática do print aparece Mauro Cid— homem branco de cabelo castanho escuro que usa uma camisa social branca, gravata verde e um terno preto. Legenda diz: ‘CONFIRMADO! Mauro Cid confirma que Bolsonaro dizia que só agiria dentro das 4 linhas.’
Em trecho distorcido por peças de desinformação, Mauro Cid diz ter ouvido de Bolsonaro que ele agiria dentro das quatro linhas da Constituição (Reprodução/X)

Prisão de Moraes. O tenente-coronel afirmou que o ex-presidente leu e sugeriu mudanças em uma minuta golpista que inicialmente previa a prisão de autoridades do Legislativo e do Judiciário. Cid disse que Bolsonaro fez alterações no documento e manteve somente a previsão de prisão de Alexandre de Moraes.

Interferência. O militar também disse que Bolsonaro tentou interferir no relatório das Forças Armadas sobre a integridade das urnas eletrônicas. Segundo ele, o ex-presidente teria pressionado para que o documento fosse mais “duro”.

“Essa pressão realmente existia. O general Paulo Sérgio [Nogueira de Oliveira, ex-ministro da Defesa] tinha uma conclusão desse documento voltada para um lado mais técnico e se tinha a tendência de fazer algo voltado um pouco mais para o político. E acabou que, no final, chegou-se ao meio termo”, afirmou Cid.

Manifestações golpistas. Em outro trecho do interrogatório, o ex-ajudante de ordens afirmou ao advogado de Bolsonaro que o ex-presidente não incentivou formalmente atos de cunho golpista em frente a quartéis do Exército, mas que também não atuou para desmobilizá-los.

“Uma coisa que, inclusive, o presidente falou quando vinham esses grupos mais conservadores falar para o presidente. Um dia ele deu a seguinte resposta: ‘Não fui eu que chamei eles aqui, não sou eu que vou mandar eles embora’ (...) Ele nunca mobilizou, mas também não mandou embora”, disse.

Hacker. Segundo Cid, o ex-presidente também trocou mensagens com outros militares investigados e participou de ações para levantar, inclusive com a ajuda de um hacker, indícios que desacreditassem o sistema eleitoral do país.

Cortes de Garnier e Bolsonaro

Também circulam nas redes sociais cortes de depoimentos em que Bolsonaro e o ex-comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier, negam a existência de uma trama para dar um golpe de Estado.

Nos cortes virais, Garnier disse ter participado de uma reunião com Bolsonaro em que foi discutida a decretação de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) para questões de segurança pública e negou ter recebido uma minuta golpista. O militar afirmou apenas ter visto uma apresentação na tela do computador com algumas informações.

Print de post mostra trecho do depoimento do almirante Almir Garnier — homem branco de cabelo grisalho, que aparece na imagem usando óculos, terno preto, camisa social branca e gravata azul. Garnier está sentado com as mãos apoiadas sobre uma mesa em frente a um microfone. Na parte superior da imagem há uma legenda que diz: ‘Que lapada’. Na parte inferior há outra legenda que diz: ‘Almirante Garnier chama Cid de coronel delator e afirma que não foi discutido nenhuma prisão de autoridades em reunião!’
Cortes do depoimento do almirante Almir Garnier têm sido difundidos por apoiadores de Bolsonaro para afastar o ex-presidente de trama golpista (Reprodução/Instagram)

O ex-comandante disse ainda que, em reuniões com o presidente, não foi mencionada a prisão de quaisquer autoridades, diferentemente do que foi afirmado por Mauro Cid.

Em depoimento posterior a Garnier, Bolsonaro também afirmou ter visualizado as informações do que tem sido chamado de “minuta golpista” por meio de uma tela.

O caminho da apuração

Aos Fatos transcreveu o interrogatório ao qual Mauro Cid foi submetido no STF na segunda-feira por meio da ferramenta Escriba e analisou as declarações dadas pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. O mesmo foi feito com os depoimentos do próprio ex-presidente e do almirante Almir Garnier.

Também pesquisamos no Instagram e no X por cortes virais que descontextualizavam trechos do depoimento de Cid e os comparamos com a íntegra de suas falas.

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