Se você nunca ouviu os versos “Ão, ão, ão, a veneno de avião / Olha quem chegou? / É o tal do Colonão”, provavelmente você está lendo essa newsletter enquanto toma café no Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Brasília. A música “Colonão” é o maior sucesso da dupla paranaense Adson e Alana e tem impressionantes 41 milhões de visualizações no YouTube (fica aqui o agradecimento à repórter especial Gisele Lobato por ter me apresentado essa obra de arte).
Para quem cresceu na capital e se preocupa com o meio ambiente e a crise climática que ameaça a nossa existência no planeta, o refrão parece uma confissão dos crimes do agronegócio. Afinal, não há eufemismo, é veneno mesmo. No clipe, a dupla dança mexendo as mãos como se fosse um avião lançando agrotóxico na plantação.
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Para além do choque inicial, é preciso dar um o atrás para entender o sucesso de Adson e Alana. Os versos que antecedem o refrão oferecem uma porta de entrada:
“As novinha hoje não querem mais os cara da cidade
Se uma colheitadeira vale mais que uma Ferrari
As novinha tão querendo os cara que vêm do mato
Que cada trator vale mais do que um Camaro”
“Colonão” exalta o jovem homem do campo cuja ascensão social foi alcançada graças à plantação de commodities agrícolas. Esse homem agora é desejado pelas “novinha”, que trocaram o Camaro amarelo de uma década atrás pela colheitadeira como símbolo de status. É a versão rural do mito da meritocracia.
De um ponto de vista sudestino, isso tudo parece uma bobagem. Mas as canções de Adson e Alana, que se autointitulam “embaixadores do agro”, são peças de uma engrenagem muito mais ampla que transforma o agro num estilo de vida e impulsiona a monocultura agroexportadora como o único caminho para a riqueza (individual, é claro). É um discurso sedutor principalmente na fronteira agrícola brasileira, do sul do Amazonas ao Matopiba — área que engloba Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
E o que isso tem a ver com desinformação? Tudo. Para compreender a penetração de visões negacionistas sobre o meio ambiente nos territórios mais vulneráveis e cuja preservação é fundamental para o nosso futuro, é preciso entender como toda uma visão de mundo é promovida por um ecossistema que envolve (des)informação e entretenimento.
Segundo João Guilherme Bastos dos Santos, diretor de tecnologia e estudos temáticos do Instituto Democracia em Xeque, o foco da desinformação sobre mudanças climáticas e dos ataques contra a COP-30 — conferência do clima que será realizada em Belém neste ano — está em questões socioambientais, e não em quantos graus a temperatura do planeta vai aumentar.
Em uma fala durante o Summit de Integridade da Informação Climática, realizado em Brasília na semana ada, o pesquisador explicou que slogans como “árvore em pé, barriga vazia” não foram feitos para quem está preocupado com a mudança do clima, mas sim para quem aspira alcançar a promessa do agronegócio.
“São pequenos produtores que veem o agro não como oposição ou entrave, mas elemento de aspiração. Não estamos falando só de informações falsas, mas de um ecossistema de informação que envolve entretenimento. Essa mobilização da memória afetiva da roça é extremamente comum e fomenta isso. Neste sentido, a floresta não é entendida como condição de possibilidade do campo, mas razão da pobreza das pessoas”, disse Santos.
Marie Santini, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e diretora do NetLab, apresentou no evento um diagnóstico do que chamou de “infodemia socioambiental”. No topo da cadeia estão políticos, partidos e lideranças, que produzem conteúdo para as redes sociais e mantêm uma relação de proximidade com veículos de mídia locais. Nas duas frentes, há uma supervalorização da importância econômica do agronegócio e minimização de seus impactos.
Santini apresentou um estudo recente do NetLab sobre a mídia local na Amazônia Legal que constatou que quase 75% dos veículos se posicionavam a favor de obras de infraestrutura com grande impacto ambiental. As publicações analisadas também eram responsáveis por disseminar desinformação e teorias da conspiração contra ONGs e supostas “forças globalistas”.
Os dois pesquisadores destacaram que, no debate sobre integridade da informação climática, é preciso olhar para a infraestrutura por onde as informações chegam até as pessoas. Na Amazônia Legal, a principal forma de distribuição de conteúdo são os aplicativos de mensagem, como WhatsApp e Telegram.
Santos ressaltou que a desinformação chega nesses territórios por fora das grandes plataformas, num sistema de distribuição complexo que precisa ser entendido localmente. Ao citar o trabalho feito durante a I das ONGs, ele disse que as falas dos parlamentares circulavam como recortes nos serviços de mensageria e em rádios locais, como áudio.
Hoje, a Starlink de Elon Musk é a principal responsável por conectar o território amazônico. É ferramenta de trabalho dos garimpeiros que extraem ouro ilegalmente, contaminando rios e espalhando doenças entre ribeirinhos e povos indígenas. E também proporciona a conexão que permite a articulação de um ecossistema que promove “colonões”, desqualifica modos de vida tradicionais, criminaliza a atuação de ONGs e persegue ativistas dos direitos humanos.
Marcos Wesley, do site independente Tapajós de Fato, viu uma colega ser esfaqueada em frente à redação, em Santarém, no oeste do Pará. Ele próprio, ameaçado de morte, foi obrigado a deixar a cidade. Por isso, é preciso olhar para a infraestrutura que sustenta os ataques à integridade da informação. Na Amazônia que receberá a COP-30, defendê-la pode colocar a sua vida em risco.