Políticos deturpam história do Brasil para defender que país tem ‘tradição’ em anistias

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Em busca de argumentos que livrem os envolvidos nos ataques golpistas de 8 de Janeiro, a oposição tem revirado os livros de história para defender que o Brasil possui uma “tradição” em anistias.

Na construção desse raciocínio, porém, políticos têm deturpado o ado, comparando contextos distintos e até citando como exemplo da suposta “vocação” do Brasil em perdoar episódios que, na realidade, terminaram com líderes enforcados ou massacre da população.

A estratégia de listar vários eventos históricos para defender a anistia ao 8 de Janeiro foi inaugurada pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF) no dia 3 de abril. Em discurso no Senado, a ministra citou mais de uma dezena de episódios que indicariam “que o clamor popular pelo perdão não é um instituto novo”, mas sim “parte da história do Brasil”.

Três dias depois, construção retórica similar foi adotada pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), durante ato na avenida Paulista convocado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No dia 11, foi a vez da deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC) tuitar um fio com as mesmas alegações.

Alguns historiadores — sobretudo os que se dedicam ao século 20 — até concordam que o país possui, de fato, uma inclinação para o esquecimento, mas argumentam que isso não é benéfico.

“A gente alimenta uma tradição secular que enfraquece a nossa democracia, que abre caminho para novas tentativas de golpe de Estado e para a manutenção de uma lógica golpista no interior das Forças Armadas”, diz Lucas Pedretti, autor do livro “A transição inacabada” (2024, Companhia das Letras), que trata da redemocratização do Brasil após a ditadura militar.

Já a historiadora Mayara Paiva de Souza explica que, sob o argumento de necessidade de “pacificação”, as anistias brasileiras funcionaram, em muitas ocasiões, como instrumentos políticos usados para garantir acordos e preservar os interesses dos grupos dominantes.

A pesquisadora também considera contraditória a evocação da suposta “tradição” por Damares, lembrando que a senadora anulou centenas de portarias que anistiavam vítimas do golpe de 1964 quando foi ministra.

Sobre as portarias, a assessoria de Damares Alves disse ao Aos Fatos que “em milhares de casos houve, sim, deferimento de pedidos de anistia” e que “quem comprovou ter sido perseguido politicamente foi beneficiado, conforme os termos da lei”.

A equipe da senadora também afirmou que o objetivo de seu discurso não era “fazer análise histórica ou política” dos eventos citados, mas apenas “enfatizar a retórica de que o instituto da anistia não é novidade em nosso arcabouço jurídico”, e argumentou que o fato de os episódios mencionados também terem envolvido repressão — o que, segundo a nota, não foi negado por Damares — não invalida o ponto central.

O governador Tarcísio de Freitas e a deputada Júlia Zanatta não responderam aos pedidos de posicionamento. O espaço segue aberto.

A seguir, Aos Fatos checa os discursos que a oposição tem usado para defender que o país possui uma tradição em anistiar, mostrando os limites dessa argumentação — e as várias mentiras disseminadas pela retórica.

Alt text: Ilustração em tons verde, laranja e preto mostra colagem de imagens históricas, incluindo cena de homem na forca, intercalada com grades que simulam prisão. 

Brasil Colônia (1500-1822)

Em seu discurso no Senado, Damares afirmou que, no período colonial, apenas os implicados na Inconfidência Mineira e na Conjuração Baiana não receberam perdão, citando “o movimento contra a Companhia do Comércio do Estado do Maranhão”, de 1684, como exemplo de episódio que teria resultado em anistia. A afirmação, porém, não é verdadeira.

“É falso que foi todo mundo perdoado ali”, diz o historiador João Henrique Ferreira de Castro, cuja tese de doutorado analisa os perdões a revoltas ocorridas no Brasil Colônia.

Mais conhecido como Revolta de Beckman, o episódio lembrado pela ex-ministra terminou com dois de seus líderes enforcados — incluindo Manuel Beckman, um dos fazendeiros que começou o protesto contra o monopólio da Companhia de Comércio do Maranhão e a oposição dos jesuítas à escravidão indígena.

Castro explica que o número de execuções ao final do levante não foi maior porque “era muito raro, especialmente em uma revolta de súditos livres, homens poderosos, que a sangria ocorresse”. “É diferente de quando a gente fala de revolta de escravizados, de revoltas indígenas”, compara.

O historiador ressalta também que o direito em vigor na época era baseado na ideia de Justiça coletiva, ao contrário do direito liberal, que surgiu após a Revolução sa (1789-1799) e leva em conta a individualidade do infrator.

“A Justiça [no período colonial] tinha uma dimensão religiosa, inclusive muito importante nesse contexto, que considerava que punir poucos servia de exemplo”, explica Castro.

Além do caso Beckman, outras revoltas nativistas também terminaram com punições exemplares, como a Revolta da Cachaça (1660-1661), no Rio de Janeiro, e os Motins do Maneta (1711), na Bahia.

Enquanto a punição exemplar provocava temor nos súditos, a possibilidade de o rei perdoar reforçava sua autoridade, por demonstrar benevolência e amor ao povo.

É nesse contexto que são concedidos perdões em um episódio lembrado tanto por Damares como por Tarcísio: a Guerra dos Emboabas (1707-1709), confronto pela exploração das recém-descobertas jazidas de ouro onde hoje fica Minas Gerais.

Os discursos pró-anistia, porém, omitem que a Coroa acabou por repensar a estratégia após constatar que os perdões estavam encorajando novos levantes, que se tornaram recorrentes na região.

A última dessa leva de revoltas ocorreu em 1720, em Vila Rica (hoje Ouro Preto), e colocou um ponto final na série de perdões. Filipe dos Santos — tropeiro de poucas posses que deu nome ao levante — foi executado, enquanto Pascoal da Silva Guimarães, homem poderoso na região, teve suas posses incendiadas. Vestígios das ruínas dessas casas formam hoje um sítio arqueológico que ficou conhecido como Morro da Queimada.

Ilustração em tons verde, laranja e preto mostra cenas históricas com homem prestes a ser executado à frente e cena de conflito ao fundo. À direita, grades simulam prisão. 

Império e Regência (1822-1889)

No período colonial, o perdão era mais comum quando a revolta era protagonizada por poderosos. A independência do Brasil, em 1822, não alterou essa lógica. Se é verdade que muitos membros das elites que se rebelaram no século 19 não foram punidos, os inúmeros levantes populares registrados no período não tiveram o mesmo desfecho.

Não por acaso, movimentos de pessoas escravizadas que resultaram em punições severas, como a Revolta de Carrancas (1833) e a Revolta dos Malês (1835), foram esquecidos nos discursos que defendem que o Brasil tem uma “tradição” em conceder anistias.

“Na época do Império, várias foram as rebeliões: as mais famosas, Confederação do Equador, em 1824; Cabanagem, em 1840; Balaiada, em 1840; Sabinada, em 1838; e Farroupilha, lá no Rio Grande do Sul, em 1845”, listou Damares na tribuna, omitindo as revoltas contra a escravidão.

A senadora citou uma série de conflitos separatistas que desafiaram a hegemonia do Rio de Janeiro após a independência do país e que marcaram, sobretudo, o chamado Período Regencial — entre a abdicação de Dom Pedro 1º, em 1831, e a maioridade de seu sucessor, em 1840.

A exceção é a Confederação do Equador, que eclodiu ainda no Primeiro Reinado e culminou não em perdão, mas na execução de diversos de seus líderes — entre eles Frei Caneca.

Pintura histórica representando uma cena de batalha durante a Confederação do Equador, com tropas atravessando uma ponte de madeira sobre um rio. À esquerda, oficiais a cavalo observam e comandam a movimentação das tropas. Soldados marcham em formação na ponte e nas margens do rio, enquanto canhões disparam ao fundo. Há fumaça de tiros e movimentação militar intensa em todo o cenário, com edifícios e vegetação ao redor.
Confederação do Equador, ocorrida durante o Primeiro Reinado, terminou na execução de diversos líderes (Leandro Martins)

Em seu discurso, Damares reconheceu que os movimentos que citou sofreram repressão, mas amenizou a punição dizendo que ela foi seguida por uma anistia “a todos os insurretos que tivessem se submetido à ordem legal e cooperado com a sua manutenção”.

Como a ex-ministra apontou, as anistias registradas nesses episódios foram limitadas, beneficiando apenas quem ou a cooperar com as autoridades. Ela omitiu, porém, que esse grupo corresponde a membros das elites locais, que recuaram da disputa por mais autonomia quando os levantes começaram a mobilizar as camadas mais pobres da população.

“A maioria dos envolvidos nessas insurreições foram reprimidos brutalmente, morreram durante a revolta ou foram perseguidos e punidos depois”, afirma Ricardo Pirola, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “A grande marca dessas revoltas é o quanto elas foram brutalmente massacradas.”

O historiador cita como exemplo o caso da Cabanagem, conflito que durou cinco anos e no qual se estima que cerca de 30% da população do Pará tenha sido morta.

“As primeiras lideranças políticas dessas revoltas, que geralmente eram ligadas a uma elite local, a fazendeiros, aram a participar da repressão, da luta contra a população que se engajou na revolta por vários outros motivos, como a pobreza, a discriminação racial, a luta por direitos que estavam previstos na Constituição”, explica o professor.

Assim como a Cabanagem, também a Sabinada e a Balaiada se tornaram revoltas de cunho popular, mobilizando as insatisfações de negros, mestiços, indígenas e caboclos em prol de transformações sociais, o que amendrontou as elites que haviam iniciado os levantes.

Pintura representando um grupo de cavaleiros gaúchos em carga, armados com lanças e carregando bandeiras. À frente, um líder de capa vermelha cavalga energicamente em um cavalo preto, seguido por outros combatentes montados.
Escravizados se engajaram na luta pela independência do Rio Grande do Sul durante a Farroupilha por conta da promessa de alforria (Guilherme Litran/Museu Júlio de Castilhos)

Mesmo a Farroupilha, cuja pauta não incorporou as reivindicações de mudanças sociais, acabou por atrair a participação de escravizados, que se engajaram na luta pela independência do Rio Grande do Sul devido à promessa de alforria.

Pirola considera que a comparação entre os eventos do século 19 com os ataques violentos à Praça dos Três Poderes em janeiro de 2023 não faz sentido historicamente por se tratarem de contextos muito diferentes, e também acha estranho que esses episódios sejam evocados agora como exemplos para o presente.

“Você está propondo o quê? Que se faça como na Regência, que a grande maioria vá presa, sofra punições, e a gente escolha a dedo algumas das lideranças para serem anistiadas, é isso?”, indagou.

Ilustração em tons verde, laranja e preto mostra colagem de fotografias históricas intercaladas com grades que simulam prisão posicionadas apenas de um lado. 

Primeira República (1889–1930)

Perdões de alcance limitado ou sem efeitos práticos também estão sendo citados como exemplos de anistias que teriam sido concedidas no período logo após a Proclamação da República. Novamente, a retórica da oposição omite eventos que tiveram desfechos violentos, erra ao listar episódios em que protagonistas pobres foram punidos e inclui até um caso em que os anistiados foram traídos pelo governo.

Mencionada mais de uma vez nas últimas semanas, a anistia concedida em 1895 pelo primeiro presidente civil, Prudente de Morais (1894-1898), foi criticada por não ser um perdão total, pois impedia os militares anistiados de assumirem seus antigos postos. A restrição — que levou o jurista Ruy Barbosa a apelidar a medida de “anistia inversa” — só foi revogada dois anos depois, em novo decreto.

Essa anistia beneficiou os envolvidos na Revolta da Armada (1893-1894) e na Revolução Federalista (1893-1895) e serviu para pacificar o país, mas as diferenças entre os episódios e o presente fazem com que pesquisadores considerem a comparação com o 8 de Janeiro inadequada.

O historiador gaúcho Arthuro Grechi lembra que a Revolução Federalista foi uma guerra civil, que começou no Rio Grande do Sul e se espalhou por Santa Catarina e Paraná, deixando entre 10 e 12 mil mortos. “Pensar a anistia para esse contexto é algo totalmente diferente do que pensar a anistia para qualquer outro”, compara.

Já Silvia Capanema, professora da Universidade Sorbonne Paris Nord, ressalta que a anistia à Revolta da Armada foi defendida à época porque os oficiais da Marinha combateram o governo de Floriano Peixoto (1891-1894), considerado autoritário — ao contrário do 8 de Janeiro, que foi “um ato contra a democracia”.

 Fotografia em preto e branco mostrando um grupo numeroso de soldados uniformizados reunidos ao lado de um edifício de alvenaria, com janelas altas e sacada de ferro trabalhado. À esquerda, canhões e troncos de madeira estão empilhados. No centro e à direita da imagem, alguns homens estão em pé com roupas simples e expressão neutra, contrastando com os militares em uniforme.
Tropas do Exército fortificam zona portuária do Rio durante Revolta da Armada, que mobilizou oficiais das forças navais (Marc Ferrez e Juan Gutierrez)

A Revolta da Armada mobilizou altas patentes das forças navais. Anos depois, em 1910, os marinheiros pretos e pobres que protagonizaram a Revolta da Chibata não tiveram o mesmo tratamento de seus superiores. Para eles, a anistia foi uma armadilha.

A oferta de perdão foi feita quando o governo do marechal Hermes da Fonseca (1910-1914) estava de mãos atadas, porque os marinheiros tinham tomado os principais navios de guerra e apontado os canhões para o Rio de Janeiro em protesto contra os castigos corporais que persistiam na corporação. Quando os rebeldes aceitaram baixar armas, veio a traição.

“Depois que essa anistia foi decretada, esses marinheiros anistiados sofreram retaliações gravíssimas”, conta Grechi, lembrando que João Cândido, líder do movimento, foi um dos poucos que sobreviveu do grupo, que foi jogado em uma masmorra sem água, comida ou ar.

Imortalizado pela música O mestre-sala dos mares, João Cândido foi perseguido durante toda a sua vida, inclusive na ditadura militar (1964-1985). Negro, de origem pobre, morreu sem ter sido reintegrado à Marinha.

Citado por Damares, o perdão de 1910 fez tão pouco por ele que, em 2003, o Congresso decretou uma anistia póstuma ao marinheiro, reconhecendo sua luta pelo fim da tortura aos descendentes de escravos que trabalhavam nos navios.

Para defender a anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro, a senadora Damares também lembrou da Revolta da Vacina de 1904, motim popular registrado no Rio de Janeiro contra a vacinação obrigatória para varíola.

Esse é mais um exemplo, porém, de perdão que ignorou os mais pobres, tendo sido pensado para “um pequeno grupo de pessoas que nem foram as grandes protagonistas” da revolta, diz Grechi.

O levante, que começou em um grupo de jovens oficiais, escalou para uma rebelião popular, mobilizando as camadas mais pobres da cidade — sobretudo negras. “A anistia simplesmente ignorou a existência destes revoltosos”, conta o historiador. Muitos deles foram presos em navios e deportados para o Acre — destino que alguns nem conseguiram alcançar, pois morreram durante a viagem.

A morte também foi o destino de boa parte dos participantes da Guerra de Canudos (1896-1897) — que marcou a Primeira República, mas é omitida pela retórica da oposição. Os sertanejos pobres do interior da Bahia, seguidores de Antônio Conselheiro e combatidos pelas tropas do Exército, não tiveram direito a anistia, sequer a julgamento.

Ilustração em tons verde, laranja e preto mostra colagem de fotografias históricas intercaladas com grades que simulam prisão posicionadas apenas de um lado. 

Era Vargas (1930-1945)

O comunismo costuma ser citado em cartazes erguidos nas manifestações de apoio a Bolsonaro, mas no ato de 6 de abril ele foi lembrado na avenida Paulista por um motivo diferente do habitual. “Vocês sabiam que Vargas deu anistia para quem participou da Intentona Comunista?”, questionou Tarcísio de Freitas.

Concedida em 1945, a medida citada pelo governador de São Paulo é um dos três perdões assinados pelo ex-presidente Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954). Como lembrou Damares na tribuna do Senado, o líder gaúcho já havia anistiado, em 1930, civis e militares perseguidos pela Primeira República e, quatro anos depois, os envolvidos na Revolução Constitucionalista de 1932.

Vargas, de fato, recorreu mais de uma vez à anistia, mas não por generosidade. Como explica a historiadora Mayara Paiva de Souza, essas medidas foram instrumentos usados pelo ex-presidente para angariar apoio político e se manter no poder, sobretudo em momentos de crise.

Para Souza, “é difícil comparar os episódios de anistia que marcaram o período varguista com o projeto de anistia atual”, já que, ao contrário daquela época, não enfrentamos um regime de repressão ditatorial. “O 8 de janeiro marcou uma tentativa de golpe sobre um governo legitimamente eleito pelo povo, não há Estado de Exceção”.

A chamada Era Vargas (1930-1945) foi um período turbulento. Começou com um governo provisório, instalado por um golpe e que durou até 1934, quando uma eleição indireta estabeleceu um governo constitucional. Em 1937, Vargas deu novo golpe, inaugurando a ditadura do Estado Novo, que perdurou até 1945.

Para chegar ao poder, Vargas contou com o apoio de boa parte dos “tenentes” — jovens oficiais do Exército que, na década de 1920, protagonizaram uma série de revoltas militares contra o sistema político da Primeira República. Eles foram perseguidos sobretudo no governo de Artur Bernardes (1922–1926), período de grande repressão no Brasil.

Reivindicada pelo Movimento Tenentista, a bandeira da anistia foi abraçada pelo grupo político de Vargas — que, cinco dias após assumir o governo, concedeu a clemência a civis e militares que combateram a Velha República.

A chegada de Vargas ao poder, porém, não foi sinônimo de calmaria e, em 9 de julho de 1932, as tropas paulistas se rebelaram na chamada Revolução Constitucionalista. A luta durou três meses e, apesar da derrota das forças de São Paulo, o movimento estremeceu o governo provisório, que acabou por tutelar a elaboração de uma nova Constituição, promulgada em 1934.

Fotografia em preto e branco mostrando um grupo de soldados posicionados em uma encosta coberta por vegetação, deitados no chão e apontando rifles em direção ao horizonte. Um dos soldados está em pé atrás deles, fazendo um gesto com o braço como se estivesse comandando ou orientando a ação. Ao fundo, é possível ver uma cidade envolta por névoa ou fumaça.
Vargas concedeu anistia a parte dos envolvidos na Revolução Constitucionalista para formar novas alianças políticas (Fundo Correio da Manhã)

Foi nesse contexto que Vargas anistiou parte dos envolvidos na revolução, visando a formação de novas alianças políticas. Segundo Souza, a medida “beneficiaria diretamente os políticos paulistas, que ensaiavam uma reaproximação com Getúlio Vargas, e os militares envolvidos no movimento de 1932”.

No final do Estado Novo, o político gaúcho recorreu pela terceira vez à anistia, agora para tentar se manter no poder em um momento em que enfrentava pressões para pôr fim à ditadura que, durante oito anos, perseguiu, torturou, prendeu e exilou milhares de opositores políticos.

A crescente oposição a Vargas após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra levou para a rua a bandeira da anistia, que o ditador acabou por decretar em 18 de abril de 1945. Entre os beneficiados estavam os envolvidos na Intentona Comunista — golpe fracassado liderado pelo Partido Comunista do Brasil com apoio de setores militares, ocorrido em novembro de 1935.

“O decreto visava, claramente, beneficiar o líder comunista Luís Carlos Prestes, que tinha grande apoio popular e prometera uma base de apoio para Getúlio nas eleições de 1945”, explica a historiadora que estudou o episódio. Vargas tinha, até então, sido ferrenho opositor dos comunistas.

A anistia de 1945 libertou das prisões 563 presos políticos que ainda restavam nos cárceres do Estado Novo, mas impôs restrições ao retorno dos anistiados a seus antigos postos.

“Na prática, a anistia de 1945 funcionou apenas como abertura das portas das cadeias” para esses presos, sublinha Souza, lembrando que o anticomunismo permaneceu vivo no país, resultando na cassação do partido em 1947 e servindo de pretexto para o golpe de 1964.

ilustração em tons verde, laranja e preto mostra cena de policial com cassetete agredindo pessoas no chão, à esquerda, e manifestantes promovendo ataques com objetos na mão à direita. Colagens são intercaladas com grades de prisão.

Populismo e ditadura militar (1946-1985)

Questionado pelo Aos Fatos se existe uma “tradição” de anistias no Brasil, o historiador Lucas Pedretti diz que sim, “em razão da quantidade de anistias que foram já feitas, concedidas em distintos contextos”, mas pondera que isso não significa que a tradição seja boa.

“Para essa tradição de anistias existir, existe uma outra tradição, que é a tradição de tentativa de quebra e de ruptura da ordem legal e da ordem democrática por parte das Forças Armadas”, defende o historiador.

Pedretti argumenta que os dois movimentos se retroalimentaram nas últimas décadas: militares tentam os golpes movidos por uma ideologia que faz com que se considerem superiores aos civis e essa investida “às vezes dá certo, e instala-se uma ditadura, e às vezes dá errado e eles são anistiados”.

Exemplo dessa dinâmica é a anistia de 1956, que perdoou civis e militares que se rebelaram entre 10 de novembro de 1955 e 1º de março de 1956. O período inclui a tentativa de impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek (1956-1961), o contragolpe que garantiu sua chegada ao poder e a Revolta de Jacareacanga, rebelião de oficiais da Aeronáutica contra o novo governante.

Menos de dez anos depois dessa anistia, as Forças Armadas voltaram a atentar contra a democracia, instalando um regime militar que governou o Brasil até 1985.

Pedretti afirma que as demandas por anistia começaram logo após o golpe de 1964, quando foram registradas as primeiras graves violações de direitos humanos da ditadura — que incluíram prisões arbitrárias, tortura e assassinatos.

“Já ali, no final de abril de 1964, tem gente falando ‘olha é preciso dar anistia para os presos políticos, para os exilados, para os cassados, e pacificar o país’”, diz o historiador.

Na época, porém, ainda havia a expectativa de convocação de eleições para 1965, o que não ocorreu. Os militares continuaram no poder, sustentando um regime marcado pela violência, negação de garantias fundamentais, restrição às liberdades civis, censura à imprensa e perseguição a opositores.

Foto em preto e branco de ato político durante a campanha pela anistia no Brasil. Um homem fala ao microfone no centro da imagem, cercado por uma multidão. À esquerda, outro manifestante segura um cartaz com os dizeres 'Anistia Ampla Geral e Irrestrita'. Ao fundo, uma grande faixa exibe a palavra 'ANISTIA' em letras maiúsculas. 
Ato pela anistia na praça da Sé, em São Paulo (Ennco Beanns/Arquivo Público do Estado de São Paulo)

Após o recrudescimento da ditadura, a bandeira da anistia ressurgiu em meados dos anos 1970, como demanda da sociedade civil em defesa da libertação dos presos políticos, do retorno dos exilados e da reparação às vítimas da ditadura — o que, segundo Pedretti, incluía “a própria noção de que era preciso responsabilizar os militares”.

O historiador conta que, inicialmente, a reação do regime foi negar qualquer possibilidade de perdão, sob o argumento de que o país não tinha presos políticos, mas sim “subversivos” que estariam pagando pelos seus atos.

A pressão da sociedade continuou e, em 1979, João Baptista Figueiredo assumiu a Presidência com a missão de concluir a abertura “lenta, gradual e segura” da ditadura, incluindo a anistia nesse processo. Ao ser apropriado pelos militares, porém, o conceito foi transformado para os beneficiar, se afastando da demanda original da sociedade.

“A anistia de 1979 garante a impunidade dos torturadores, de quem assassinou em nome do Estado, de quem desapareceu com os corpos”, analisa Pedretti. “Mais do que isso, ela vai ser constantemente utilizada pelos militares como uma forma de tentar evitar que a demanda por memória, verdade, justiça e reparação avance”.

Pedretti considera que o discurso que resgata o episódio de 1979 para defender a anistia ao 8 de Janeiro possui alguma coerência. “O que se pretende hoje é reproduzir esse espírito que guiou as anistias do ado, que é o espírito de impedir que a gente elabore o nosso ado de violência”.

O caminho da apuração

Aos Fatos transcreveu o discurso de Tarcísio de Freitas utilizando a ferramenta Escriba e identificou argumentações similares defendidas por parlamentares por meio de análise de publicações nas redes sociais.

Na sequência, a reportagem submeteu os discursos a historiadores especializados em cada um dos períodos abordados. Os pesquisadores foram selecionados por terem publicado trabalhos acadêmicos sobre as revoltas ou anistias citadas pelos políticos.

Referências

  1. Senado Federal (1 e 2)
  2. YouTube (@Poder360)
  3. X (@apropriajulia)
  4. Uol
  5. Câmara dos Deputados (1 e 2)
  6. Revista Tempo e Argumento

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