Trump ignora vantagem comercial e barreiras americanas ao criticar Brasil

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Em discurso no Congresso na última terça-feira (4), o presidente americano Donald Trump classificou como injusta a relação comercial de uma série de países com os Estados Unidos e citou o Brasil entre as nações que cobram tarifas “tremendamente mais altas” do que os americanos.

“Outros países têm usado tarifas contra nós por décadas, e agora é a nossa vez de começar a usá-las contra esses outros países (...) Em média, a União Europeia, China, Brasil, Índia, México e Canadá (...) e inúmeras outras nações nos cobram tarifas tremendamente mais altas do que cobramos deles. É muito injusto”, disse Trump.

A alegação, que sustenta o plano do chefe de Estado de instituir taxas de importação mais altas, foi classificada como simplista por especialistas ouvidos pelo Aos Fatos. Eles apontam que a relação comercial entre as duas nações é complexa e multifatorial e que a discussão não deve ser limitada às tarifas cobradas, como fez Trump.

Presidente dos EUA, Donald Trump, homem branco, de cabelos grisalhos e terno preto, discursa diante de uma multidão de pessoas vestidas com trajes formais no Congresso americano
Trump acusou Brasil de manter relação comercial ‘injusta’ com os EUA (Reprodução/YouTube)

Segundo os entrevistados, a fala de Trump ignora que:

  1. EUA têm vantagem na balança comercial;
  2. Tarifa média brasileira não significa injustiça comercial;
  3. EUA dificultam importações ao aplicar barreiras não tarifárias;
  4. Reciprocidade de tarifas proposta por Trump é alvo de discussão entre especialistas.

1. EUA têm vantagem na balança comercial

Dados do MDIC (Ministério Desenvolvimento, Indústria e Comércio) mostram que a relação comercial entre Brasil e EUA tem sido mais favorável aos americanos ao menos desde 2009, quando o volume de importações superou o de exportações (veja abaixo).

Considerando os valores registrados desde 1997, o Brasil tem um déficit comercial acumulado com os americanos de U$ 48,2 bilhões.

Os dados mais recentes mostram que 2025 também começou deficitário para o Brasil. Em janeiro, a diferença entre as importações e exportações foi de US$ 230,2 milhões. No mesmo período do ano ado, a relação foi superavitária para o Brasil em US$ 158,2 milhões.

Redução no déficit. Apesar dos resultados negativos, houve uma redução significativa do déficit na balança comercial entre Brasil e Estados Unidos desde o início do governo Lula. A diferença entre importações e exportações, que chegou a US$ 13,86 bilhões em 2022, diminuiu para US$ 1,04 bilhão em 2023.

As exportações brasileiras para os EUA atingiram US$ 40,3 bilhões em 2024, o maior valor já registrado na história comercial dos dois países.

De acordo com o advogado tributarista Jean Paolo Simei e Silva, isso se deve principalmente a fatores externos:

  • O boom das commodities — produtos primários produzidos em larga escala —, em especial da soja, cujo preço subiu 12% em 2023. As exportações brasileiras de petróleo para os EUA também aumentaram 40%, impulsionadas pela crise energética na Ucrânia;
  • A desvalorização do real, que tornou as exportações mais lucrativas para produtores brasileiros;
  • A alta demanda industrial dos Estados Unidos por minério de ferro e café brasileiros, apoiada pela recuperação econômica americana pós-pandemia.

Tarifas. Daniel Cassetari, presidente executivo da HKTC — empresa especializada em comércio exterior — ressaltou ao Aos Fatos que não houve um aumento de tarifas de importação aplicadas pelo Brasil no atual governo Lula, e sim uma reversão de cortes feitos no governo Bolsonaro.

“Durante o governo Bolsonaro, houve uma redução média de 25% em impostos de importação para incentivar a circulação de bens no país. Quando Lula assumiu, ele apenas restabeleceu as alíquotas ao patamar anterior”, diz.

Esse é o caso do etanol, que se tornou alvo de Trump em fevereiro, quando o presidente americano anunciou a criação de tarifas recíprocas para países que cobram taxas dos EUA.

As vendas de etanol americano para o Brasil foram praticamente isentas de impostos entre 2011 e 2017. Naquele ano, o Brasil impôs a Tarifa Externa Comum do Mercosul, de 20%, para volumes superiores a 600 milhões de litros por ano.

A tarifa foi temporariamente suspensa em 2020 e 2022, durante o governo Bolsonaro. Após idas e vindas, o governo Lula instituiu uma taxa de 18%, que vigora até hoje.

Frentista abastece carro com etanol em posto de gasolina (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Trump citou o etanol para exemplificar relação injusta com o Brasil, mas omitiu histórico e peso na balança comercial (Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

A tarifa aplicada pelos EUA é de 2,5%, mas os americanos impõem cotas para etanol, o que limita o o de produtos estratégicos brasileiros, lembra Simei e Silva.

Além disso, a relação de compra e venda do combustível entre Brasil e EUA não é expressiva. Em 2024, a venda do etanol brasileiro representou apenas cerca de 4% do total obtido pelo Brasil com exportações, e cerca de 0,1% do valor total de produtos exportados pelos EUA para o Brasil.

2. Tarifa média brasileira não significa injustiça comercial

Um levantamento do Bradesco a partir de dados de 2022 do Banco Mundial apontou que a tarifa média aplicada pelo Brasil contra produtos importados é de 11,3%, sendo maior para bens de consumo e quase zero para combustíveis. Já as tarifas impostas pelos EUA a produtos brasileiros são menores (em média 2,2%), sendo maiores para bens de consumo e quase zero para bens de capital e combustíveis.

Médias semelhantes foram observadas em um relatório publicado em janeiro pelo Itaú: a tarifa média brasileira é de 11,2% e a americana, de 1,5%.

“Embora a diferença nas tarifas médias possa sugerir uma assimetria, ela não é suficiente para caracterizar a relação comercial como injusta. As políticas tarifárias de cada país refletem suas prioridades econômicas e estratégias de desenvolvimento, e ambas as nações têm se beneficiado dessa relação, cada uma à sua maneira", afirmou ao Aos Fatos o advogado tributarista Marcelo Costa Censoni Filho.

Segundo Censoni Filho, as tarifas mais elevadas do Brasil refletem uma postura historicamente protecionista, alinhada ao objetivo de preservar o desenvolvimento industrial interno e gerar empregos. Já os EUA adotam uma postura mais liberal, com tarifas médias mais baixas, o que é um reflexo da competitividade e da capacidade de seus produtos dominarem mercados internacionais sem barreiras protecionistas elevadas.

Simei e Silva concorda que a mera comparação numérica não captura a complexidade da relação entre os países. “Conforme detalhado pela Comissão de Comércio Internacional dos EUA, em 2023, o Brasil chega a aplicar 35% sobre veículos americanos, enquanto os EUA impõem 54% sobre suco de laranja brasileiro, um produto simbólico”, diz.

Já Arno Gleisner, diretor de Comércio Exterior da Cisbra (Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil) afirmou ao Aos Fatos que nos principais produtos exportados pelo Brasil aos Estados Unidos não há uma diferença significativa de tarifas. “Dizer que a relação comercial entre Brasil e Estados Unidos é injusta é retórica, mas vamos respeitá-la e buscar a melhor solução possível”, afirmou.

3. EUA dificultam importações ao aplicar barreiras não tarifárias

Embora os EUA tenham tarifas nominalmente baixas, o país, a exemplo de outras nações, impõe barreiras não tarifárias rigorosas, como normas sanitárias para carne bovina.

Foto mostra peças de carne penduradas em ganchos (Valter Campanato/Agência Brasil)
Os EUA impõem normas sanitárias rigorosas para a carne bovina; a medida funciona com uma barreira não tarifária que dificulta as exportações brasileiras (Valter Campanato/Agência Brasil)

Os EUA impõem normas sanitárias rigorosas para a carne bovina; a medida funciona com uma barreira não tarifária que dificulta as exportações brasileiras (Valter Campanato/Agência Brasil)

Outro caso é do setor de vestuário. Em 2012, por exemplo, os EUA incluíram o Brasil em um relatório sobre bens produzidos com trabalho infantil ou forçado. A medida prejudicou a imagem do país e a negociação com demais nações.

Desde então, o Brasil mantém contato com o Departamento de Trabalho dos EUA para fornecer informações e dados sobre o tema para retirar o país da lista, sem sucesso.

4. Reciprocidade de tarifas proposta por Trump é alvo de discussão entre especialistas

Segundo o advogado tributarista Jean Paolo Simei e Silva, a reciprocidade tarifária entre economias assimétricas como as do Brasil e dos EUA pode ampliar desigualdades, já que países em desenvolvimento têm indústrias menos consolidadas.

Para o tributarista, a relação comercial entre Brasil e EUA é marcada por “assimetrias estruturais”, nas quais as tarifas são apenas uma variável. “A retórica de ‘injustiça’ ignora barreiras não tarifárias dos EUA, a composição desigual do comércio e o contexto geopolítico”, diz.

“A justiça comercial deve considerar não apenas tarifas, mas também o papel de cada nação na cadeia global de valor”, completou.

Daniel Cassetari discorda e afirma que, ao adotar a reciprocidade de tarifas, os Estados Unidos não estão retaliando o Brasil, e sim ajustando a política tributária do país. “O Brasil possui uma estrutura tributária complexa, que impacta as importações de qualquer país, não só dos EUA”.

Aos Fatos procurou o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, mas não houve retorno.

O caminho da apuração

Aos Fatos consultou advogados tributaristas e especialistas em comércio exterior, além de dados públicos disponibilizados pelo MDIC e levantamentos de instituições bancárias noticiados pela imprensa.

Referências

  1. g1 (1, 2 e 3)
  2. UOL (1 e 2)
  3. CNN Brasil (1, 2 e 3)
  4. BBC Brasil
  5. Globo Rural
  6. Governo Federal (1 e 2)
  7. Infomoney
  8. relatório
  9. Portal da Indústria

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